Como um projeto de escuta solidária tem salvado vidas

 Como um projeto de escuta solidária tem salvado vidas

Iniciativa criada por jovens voluntários em Minas Gerais mostra que doar tempo e atenção pode ser tão transformador quanto doar dinheiro, e ajuda a reconstruir laços em uma das regiões com maiores índices de depressão do país

Toda quinta-feira, às sete da noite, o pátio da Igreja Nossa Senhora da Penha, em Juiz de Fora, se transforma em um ponto de acolhimento. Bancos de madeira, café quente e um cartaz simples — “Pode falar, a gente escuta” — anunciam o início de mais um encontro do Projeto Abraça, uma rede de voluntários que oferece escuta solidária e apoio emocional gratuito para pessoas em sofrimento psíquico.

Em tempos de solidão e pressa, o grupo tem mostrado que a solidariedade também se mede pelo tempo que se doa — e que ouvir o outro pode ser o primeiro passo para salvar uma vida.

O nascimento de uma ideia

O projeto nasceu em 2021, quando a estudante de psicologia Isabela Nogueira, de 24 anos, perdeu um amigo para o suicídio. “Eu me perguntava o que poderia ter feito. Percebi que muitas pessoas só precisavam de alguém disposto a ouvir sem julgamento”, conta.

Com a ajuda de colegas da faculdade e o apoio de uma ONG local, ela criou o Abraça com uma proposta simples: oferecer rodas de conversa, atendimentos individuais gratuitos e campanhas de valorização da vida em escolas e praças públicas.

Hoje, o projeto reúne 60 voluntários — entre psicólogos, estudantes, professores e aposentados — que atuam em cinco bairros da cidade. Desde o início, mais de 2 mil atendimentos gratuitos já foram realizados.

Doar tempo é doar cuidado

“Quando pensamos em doação, geralmente lembramos de dinheiro ou comida. Mas o que mais falta, hoje, é tempo”, explica André Luz, psicólogo e voluntário do projeto. “A escuta é um gesto de empatia que resgata a dignidade. Às vezes, a pessoa não precisa de conselho — só de presença.”

A participante Rita de Cássia, 56 anos, conheceu o projeto quando passava por um divórcio e depressão. “Eu estava sozinha. Eles me receberam como família. Foi a primeira vez, em meses, que alguém me ouviu de verdade. Agora sou voluntária também”, conta, emocionada.

Impacto que se multiplica

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil é o país mais ansioso do mundo e o segundo da América Latina em casos de depressão. Especialistas afirmam que o isolamento social e a falta de redes de apoio comunitário agravam o quadro.

Nesse contexto, iniciativas como o Projeto Abraça têm um papel essencial na construção de uma cultura de solidariedade emocional — um tipo de doação que não exige recursos financeiros, mas transforma comunidades.

Além dos encontros presenciais, o grupo mantém uma Central de Escuta Online, que atende pessoas de qualquer parte do país, gratuitamente, por telefone ou videochamada.

A Central de Escuta Online Projeto Abraça é (32) 4002-1188
Atendimento de segunda a sexta, das 14h às 22h. Há serviço semelhante com o Centro de Valorização da Vida, que atende pelo telefone 188, 24 horas por dia.

Entre o silêncio e o cuidado

Durante uma das rodas de conversa, Isabela observa os participantes compartilhando histórias difíceis. Em um canto, uma senhora segura um buquê de margaridas e diz: “Vocês me ouviram quando ninguém mais quis. Hoje, eu mesma trago flores pra quem chega triste.”

Esse gesto resume o propósito do Abraça: criar um ciclo contínuo de empatia e retribuição. Cada pessoa acolhida é convidada, se desejar, a tornar-se voluntária, e muitas o fazem. “A solidariedade é contagiosa”, diz Isabela. “A gente chega pra ajudar e sai ajudado.”

Doação que transforma

O projeto sobrevive de pequenas doações recorrentes — em média, R$ 15 por mês de apoiadores locais — e da venda de camisetas produzidas em parceria com uma cooperativa de costureiras. O dinheiro é usado para aluguel do espaço, material de apoio e campanhas de divulgação.

A costureira Dona Lurdes, de 63 anos, trabalha na confecção e vê na iniciativa uma forma de devolver à comunidade o que recebeu. “Eu perdi um filho pra depressão. Fazer essas camisetas é minha forma de participar. Cada peça carrega um pouco da nossa esperança”.

Fechamento

Às nove da noite, as luzes do pátio se apagam. Os bancos são empilhados, o café é guardado, e Isabela fecha o portão com um sorriso cansado, mas tranquilo. “Tem dias em que a gente acha que o mundo está frio demais. Mas basta uma escuta sincera pra reacender o calor humano”.

Em tempos de tanto ruído e indiferença, o Projeto Abraça mostra que a solidariedade também pode ser silenciosa, e que doar atenção é um dos gestos mais revolucionários de amor.

Diogo Cavazotti Aires

Diogo Cavazotti Aires

dcavazotti@gmail.com / Jornalista há mais de 20 anos, com experiência em jornal, TV, revista, internet e assessoria de imprensa. Único jornalista brasileiro a ganhar uma bolsa de investigação da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ganhou diferentes prêmios, como o Troféu Sangue Bom do Jornalismo Paranaense (quatro vezes), o Prêmio Ocepar de Jornalismo e o Prêmio Top Inovação na categoria direitos humanos. Doutor em Educação e mestre em Direitos Humanos e Direito Internacional Humanitário.

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